quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O CONTO DO VIGÁRIO

Um conto de réis. Foi esta quantia, enorme para a época, que o velho pároco de Catanzal perdeu para Pedro Lulu, boa vida cuja única ocupação, além de levar à perdição as mocinhas do lugar, era tocar viola para garantir, de uma casa em outra, o almoço de todos os dias. Nenhum vendeiro, por maior esforço de memória que fizesse, lembraria o dia em que Pedro Lulu tirou do bolso uma nota qualquer para comprar alguma coisa. Sempre vinha com uma conversa maneira, uma lábia enroladora e no final terminava por comprar o que queria, deixando fiado e desaparecendo por vários meses, até achar que o dono do boteco tinha esquecido a dívida, para fazer uma nova por cima.
A vida de Pedro Lulu era relativamente boa. Tocava nas festas, ganhava roupas usadas dos amigos e juras de amor de moças e solteironas de Catanzal. A vida mansa, no entanto, terminou quando o Padre Bastião chegou por ali. Homem sisudo, pregava o trabalho como meio único para progredir na vida. Ele mesmo dava o exemplo, pegando no batente de manhã cedo, preparando massa de cimento e assentando tijolos da igreja em construção. Quando deu com Pedro Lulu, que só queria sombra e água fresca, iniciou uma verdadeira campanha contra ele. Nos sermões, pregava o trabalho árduo. Pedro Lulu era o exemplo mais formidável que dava aos fiéis. “Não tem família, não tem dinheiro, veste o que lhe dão, vive a cantar e a mendigar comida na mesa alheia”, pregava o padre, diante do rebanho.
Aos poucos Pedro Lulu foi perdendo amizades valiosas, os almoços oferecidos foram escasseando e até mesmo nas rodas de cantoria era olhado de lado por alguns. “Isso tem que acabar”, disse consigo.
Naquele dia foi até a igreja e prostrou-se diante do confessionário. Fingindo ser outra pessoa, pediu ao padre o mais absoluto segredo do que iria contar, porque havia prometido a um amigo que não o faria mesmo diante das maiores dificuldades, mas que por vê-lo em tamanha necessidade, tinha resolvido confessar-se, passando o segredo adiante.
O padre, cujo único defeito era interessar-se demais pela vida alheia, ficou todo ouvidos. E foi assim que a misteriosa figura contou que Pedro Lulu era, na verdade, riquíssimo, mas que por uma aposta que fez, não podia usufruir de seus bens na capital, que somavam milhares de contos de réis. Ele fez uma aposta das grossas, daquelas lavradas em cartório, de que durante um ano viveria apenas com a roupa do corpo, sem arrumar nenhum trabalho e tendo como único artifício a moda de viola para conseguir comida. Durante esse tempo haveria de encontrar alguém, que mesmo vendo-o como um sujeito sem eira e nem beira, lhe emprestaria um conto de réis. Caso conseguisse, não só recuperaria todos os seus bens como o amigo teria de ofertar a uma igreja cinco vezes o dinheiro que lhe tinha sido emprestado. Se por acaso não conseguisse, teria de viver mendigando o resto da vida. Mas o empréstimo deveria ser feito na frente de testemunhas, para que não houvesse margem de dúvidas sobre como foi conseguido o dinheiro.
E foi assim que os olhares do Padre Bastião mudaram para Pedro Lulu. Quando observou bem, o padre chegou mesmo a ver, na figura daquele tocador de viola, um jovem de coração soberbo e preocupado com as causas divinas. “Cinco contos de réis daria para construir a maior igreja das redondezas”, pensava consigo, sempre que ouvia o dedilhar da viola.
Dias depois, cuidava de seus afazeres diários quando ouviu uma música mais ou menos assim:
“Sou tocador de viola
Moço jovem e arrependido
O que tenho está escondido
Alcançar não posso não
Para eu ser um moço rico
Botar sandália nos pés
Preciso que um bom amigo
Me empreste um conto de réis”
O padre, depois disso, teve certeza absoluta que ajudando Pedro Lulu estaria contribuindo com a obra de Deus. Afinal, receberia cinco vezes mais. No sermão de domingo voltou a falar sobre o trabalho árduo e disse que, como pároco, tinha uma grande obrigação para com seus fiéis. Sendo Pedro Lulu o único da vila que não trabalhava, talvez por falta de oportunidade, iria lhe emprestar um conto de réis, um bom dinheiro na época, para que começasse seu próprio negócio. “Quem sabe assim não mostraria ser, na verdade, um moço bom de coração e merecedor do amor de Deus?”. E diante de todos, desfez-se do dinheiro, fruto de muitas contribuições para a igreja, entregando-o a Pedro Lulu, que agradeceu comovido, os olhos marejados de lágrimas e como ele próprio dissera, o coração bendizendo a igreja, que dava-lhe tamanha oportunidade.
Aquela foi a última vez que viram Pedro Lulu na vila do Catanzal. Dizem que junto com ele desapareceu a mais bela cabocla do lugar. O padre ainda deu queixa à polícia dizendo ter sido enganado, mas como havia testemunhas de que tinha doado o dinheiro por livre e espontânea vontade, nada se pôde fazer contra o violeiro.
Na vila, um garoto ainda sabe cantar toda a música, aquela que o padre não se preocupou de ouvir o final:
“Sou tocador de viola
Moço jovem e arrependido
O que tenho está escondido
Alcançar não posso não
Para eu ser um moço rico
Botar sandália nos pés
Preciso que um bom amigo
Me empreste um conto de réis

Mas embora muito esperto
Bom de troça por inteiro
Não encontro algum otário
Além do nosso vigário
Que tenha tanto dinheiro”.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O NATAL MAIS FELIZ DA MINHA VIDA

Lembro que Papai Noel estava na esquina
Em frente àquela loja fina
Onde meninos pobres não podiam entrar
Eu sentava tristonho na calçada
E observava a loja lotada
De gente que chegava pra comprar

E via bichinhos, bolas, aviões
Fortes apaches com os seus canhões
E soldadinhos prontos para atirar
E via trens, casinhas e carrinhos
Ioiôs e jogos de botão
Mas meu pai só tinha um dinheirinho
E tudo aquilo custava um dinheirão

E o Papai Noel ali, barrigudo,
De barbas brancas e sisudo
Não dava sequer um sorriso
Mesmo assim as crianças o cercavam
E pelas portas da loja entravam
Como se estivessem indo ao paraíso

Lembro que naquele dia uma senhora
Ao tropeçar calçada a fora
Chegando mesmo a soltar um palavrão
Deixou cair os pacotes que levava
E os brinquedos bateram na calçada
E esparramaram-se pelo chão

Assustada com aquele quase tombo
E vendo-me por sobre os ombros
Sozinho a observar Papai Noel
Olhou em meus olhos com tristeza
E fazendo daquele gesto uma certeza
Ofertou-me um embrulho de papel

Sem saber muito bem o que fazia
Agradeci à senhora que sumia
Misturando-se logo à multidão
E com o peito batendo em disparada
Disparei eu também pra minha casa
Com o presente apertado ao coração

Era um carrinho vermelho de corrida
Sem piloto e com uma roda partida
Mas que deu a um garoto pobre
O natal mais feliz de sua vida.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A AVE GIGANTESCA

Seu Manoel é um sujeito bonachão, de bem com a vida, que passa as tardes no bar, tomando pinga, enquanto espera sua aposentadoria de dois salários mínimos, fruto de vários anos como funcionário público. Seus passatempos preferidos, além da caninha, são o de pescar e passar horas conversando.
Seu Manoel não é sujeito de polemizar as questões, muito pelo contrário, ouve tudo com a maior atenção e somente quando percebe uma informação errada ou exagero, dá algum palpite na conversa.
Antigo morador do Corre-Água, conhece os habitantes pelos nomes, assim como a seus filhos e netos, sabem quem é “gente boa”, cultiva as amizades e sempre está em visita a alguma casa. Foi em uma dessas ocasiões que visitou a residência do Seu Jarbas, afamado mentiroso do lugar, e dele, entre um cafezinho e um cigarro de palha, ouviu uma história que lhe pareceu muito esquisita.
Seu Jarbas lhe disse que certo dia estava no mato, perseguindo o que parecia ser um veado, quando no meio da floresta, um local onde poucas pessoas costumam chegar devido à distância, percebeu uma árvore. “Mas não era uma árvore comum”, contou-lhe o loroteiro. Era uma árvore de tamanha largura que com certeza cem homens, de mãos dadas, não conseguiriam abraçá-la. Seus galhos eram quilométricos, enormes mesmos, e as folhas imensas, que apenas uma daria para cobrir uma cabana. Qual a altura da árvore? Não dá nem pra imaginar, porque chegava até as nuvens. “É a mais pura verdade, Seu Manoel. É uma pena que na volta eu perdi a trilha do matão onde encontrei a árvore”, finalizou Seu Jarbas, gabando-se.
Seu Manoel coçou a barba rala e procurou não desmerecer o amigo. Mas, antes de ir, contou um caso que se passou, certo dia, quando estava sentado na varanda de seu sítio.
“Eu estava ali, pensando na vida, quando o céu de repente escureceu. Olhei para cima e, o que vi? Era uma ave de plumagem colorida como o arco-íris. Mas quem me dera que fosse um pássaro comum. Este era enorme, gigantesco mesmo. Suas asas eram tão grandes que encobriam o sol. E a calda? Era tão comprida que durante pelo menos meia hora passou em minha frente aquela procissão de plumagem sem fim”.
- Puxa, Seu Manoel. Isso só pode ser uma aberração da natureza. Afinal, pra que Deus criaria uma ave assim tão grande?
- Com certeza para pousar na sua árvore – emendou Seu Manoel.

Joseli Dias
do livro O Conto do Vigário

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

ARMANDO COM ESMAELINO

Esmaelino era um pedreiro afamado que morava bem próximo de casa. Em pleno inverno, no entanto, atravessava tempos bicudos. Sua mulher e seus filhos só não passavam fome porque a sogra, vez em quando, mandava um pouco de fubá, café, açúcar e até mesmo um naco de carne. Mas as coisas começaram a piorar quando a velha adoeceu e parte do dinheiro de sua aposentadoria foi gasta em remédios e despesas médicas. Estava Esmaelino pensando na vida, quando foi chamado pelo seu Armando, homem de posses, para realizar alguns serviços em sua casa. Seu Armando tinha fama de trambiqueiro, mas Esmaelino, que havia se mudado para o bairro há pouco tempo, não sabia de nada e lá se foi na maior boa vontade.
Seu Armando explicou o serviço, acertou o preço e providenciou o material. Eram arremates difíceis, mas Esmaelino pouco se importava. Trabalharia dia e noite, se fosse preciso, mas terminaria no máximo em dois dias. O dinheiro daria para manter o sustento de sua família por pelo menos uma semana, tempo suficiente para que providenciasse outro “bico”.
Tudo pronto, Seu Armando fez questão de inspecionar o serviço. Achou tudo ótimo, beleza mesmo. Esmaelino ouvia tudo, contente pelos elogios, e mais ainda porque iria colocar algum dinheiro no bolso. Seu Armando explicou então que voltasse à tardinha para que acertassem as contas, pois iria até o banco retirar a quantia para o pagamento.
Esmaelino já se imaginava no supermercado, cestas de compras nas mãos. Levaria primeiro leite e araruta para o menorzinho. Em seguida escolheria o que a esposa desejasse para o rancho da semana, Levaria também alguns doces e, quem sabe, passaria na loja para comprar um corte de chita para a mulher, que já estava com as roupas bem surradas.
Ao chegar na casa tocou a campainha e foi recebido pela empregada Nicinha, sendo informado que Armando tinha viajado e só voltaria dali a 15 dias. Esmaelino não acreditou no que ouviu. Ficou furioso, zangado mesmo por ter sido enganado pelo patrão. A noite, ao ouvir o filho chorar de fome, jurou que quando Armando chegasse, iriam ajustar as contas de uma maneira ou de outra, não importando as conseqüências.
Os dias se arrastaram, Esmaelino se virava como podia par ir enganando a fome, até que certa tarde soube que Armando havia retornado. “Vai ser hoje”, disse para sim mesmo, enquanto seguia para a casa, disposto a arrancar seu dinheirinho nem que fosse na marra.
Chegou, tocou a campainha e Nicinha veio atender. Esmaelino não se deu ao trabalho de dizer o que queria. Empurrou a porta, atravessou a sala e já se precipitava pelo corredor quando topou com Armando, que naquele momento saía do quarto. Iniciou os xingamentos ali mesmo:
- O senhor me enganou, disse que ia me pagar e agora está me enrolando? Eu quero é o meu dinheiro já, senão vou...
E seu Armando, com uma voz muito mansa e tranqüila:
- Calma, Esmaelino, Calma...
- Mas seu Armando...
- Calma, Esmaelino, pense comigo: As coisas não se resolvem melhor quando todos mantemos a calma? É claro que vou lhe pagar agora, mas não teria sido melhor se você tivesse chegado com educação? Você tocaria a campainha, a Nicinha iria atender e diria, evidentemente, que eu estava em casa, porque eu não costumo me esconder. Você entraria, sentaria ali naquele sofá confortável, nós tomaríamos um cafezinho juntos, eu lhe pagaria, apertaríamos as mãos e seríamos bons amigos. Não seria melhor assim?
- Claro, seu Armando, mas é que...
- Pois para provar que eu não guardo rancor, vou fingir que não aconteceu nada e você entra de novo por aquela porta, desta vez com bons modos. Faça isso, meu filho, faça...
E Esmaelino foi até lá fora, ajeitou a camisa e educadamente tocou a campainha. Quando Nicinha veio atender, usou a voz mais educada possível:
- O Doutor Armando está?
- Não, acabou de sair correndo pela porta dos fundos – sentenciou a empregada.

Joseli Dias
do livro O Conto do Vigário

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A LAMPARINA E O LAMBARI

Durante vários anos andei pelo interior, pesquisando lendas para a publicação de um livro. Nas minha andanças tive contato com os tipos mais estranhos, que diziam ter visto assombrações, outros conheciam encantos milagrosos e outros, ainda, eram mais encantadores por serem típicos e engraçados: os mentirosos.
Lá no Corre-Água, próximo ao distrito de São Joaquim do Pacuí moram Seu Francisco e Seu Jarbas, vizinhos e compadres, que na cata de coisa melhor para fazer, contam lorotas um para o outro. E o pior é que juram pela saúde dos filhos e pelo amor da mãe, que trata-se da mais pura verdade.
Um certo dia a disputa por quem aplicava uma lorota de bom tamanho terminou empatada. Seu Francisco contou a Jarbas que na noite anterior foi até o rio Corre-Água, pescar. Antes, na falta de óleo para sua lamparina, retirou um pouco de banha de traíra e experimentou acender o pavio. E não é que a coisa funcionou? Mas esse, afinal, ainda não era o melhor da história. Eis que quando tentava fisgar um jeju, atrapalhou-se e jogou a lamparina no rio. A bicha afundou, afundou... mas vejam só, já que o óleo era de peixe, que por sua vez vive na água, a lamparina não apagou. “Está lá para quem quiser ver”, concluiu seu Francisco, dando uma pitada no cigarro de palha.
Seu Jarbas não questionou. Tecendo seu próprio cigarrinho, disse acreditar piamente na história, mas também resolveu contar um fato estranho que lhe havia acontecido dias antes. Estava ele no mesmo rio, tentando apanhar um pirarucu de mais de metro que havia percebido ali dias antes. Estava com o arpão em punho, esperando o peixão vir à tona para respirar. De repente percebeu o movimento do peixe e arpoou. Acertou em cheio, mas qual sua surpresa? O bicho que brigava com o arpão não era um pirarucu. Era um lambari. Mas não era apenas um lambari. Era um “senhor lambari”, com quase um metro de tamanho e pesando mais de cem quilos. E o danado tanto brigou que conseguiu fugir do arpão quando já estava quase apanhado.
- Mas um lambari, compadre Jarbas? Todo mundo sabe que o lambari é do tamanho de uma sardinha...
- Pois é, compadre, não sei porque cargas d’água este era enorme, grande mesmo. Juro pela memória da minha mãe, já falecida, que Deus a tenha.
Terminando a conversa os dois compadres se despediram e foram dormir. Já era madrugada quando Seu Francisco bateu à porta de Seu Jarbas. Este atendeu, ainda sonolento e recebendo de pronto a proposta do vizinho e compadre:
- Olha, Seu Jarbas, eu não consigo dormir, portanto vamos fazer o seguinte: o senhor diminui o tamanho do seu lambari, que eu apago a minha lamparina.

Joseli Dias
Do livro o Conto do Vigário

O CHEM

Eu era editor de polícia de um jornal local quando o repórter que cobria a delegacia solicitou demissão para engajar-se na Marinha, como recruta. A diretoria do jornal bem que tentou fazê-lo mudar de idéia, acrescentando um bom aumento em seu salário e certas regalias, mas o rapaz estava irredutível. Queria ser marinheiro e partiu no dia seguinte, depois de um porre homérico com os amigos no Betão, bar que vendia fiado aos jornalistas do setor.
Na época o número de profissionais de imprensa era bem reduzido e os melhores estavam contratados com bons salários, o que dificultava convencer alguns deles a entrar para nossa equipe. A única maneira foi arrumar um estagiário e tentar transformá-lo em repórter para preencher a lacuna. Foi assim que chegou José Messias, que por beber muito, ter várias mulheres, mentir demais, desmerecendo assim ostentar o título de “Cristo”, passou a ser chamado de “Profeta” pelos colegas de redação.
“Profeta” até que levava jeito. Garoto novo, não media esforços para conseguir matérias e começou a ganhar elogios tanto dos colegas como da própria direção do jornal, que o contratou um mês depois. Ele ficou conhecido rapidamente, ganhava tapinhas nas costas, mas andava sempre duro, já que o pouco que ganhava gastava com mulheres na zona do Buritizal. O engraçado, ele dizia, é que os colegas faziam a mesma coisa e sempre tinham o do cigarro e trocados para o lanche. Foi então que lhe explicaram sobre o “chem”.
- A gente vai fazer uma determinada matéria que envolva gente importante e aproveita para elogiar sutilmente este ou aquele sujeito, ou mesmo a empresa deles. Os elogiados ficam tão satisfeitos que sempre nos oferecem “o da cerveja”, explicou alguém ao “Profeta”, que ficou surpreso.
- Quer dizer que se eu elogiar alguém ou uma empresa, ganho dinheiro? Isso é ótimo e vou começar a faturar agora mesmo...
E foi assim que o “Profeta” saiu para uma ronda diária pela Delegacia de Acidentes e voltou, 30 minutos depois, eufórico e dizendo que estava pronto para fazer o seu “Chem”. Sua matéria foi devolvida com muitos esporros porque dizia o seguinte:
“... O Chevete e o Fusca colidiram em frente à Auto Tintas Maranata, onde você encontra pincéis, tintas automotivas, lixas, solventes, massas, e tem um atendimento de primeira. É só falar com o dono.
(Do livro O Conto do Vigário)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

CALÇA MARROM, UM PAI ORGULHOSO

Esta semana ganhei um pequeno prêmio literário. Coisa boba, mas que me encheu de orgulho. No Teatro das Bacabeiras, onde teve a solenidade de entrega, enquanto todos os meus amigos comemoravam, eu lembrei do meu pai. Queria que ele estivesse lá, junto comigo, me olhando entre orgulhoso, feliz e tímido, me fitando com aqueles olhos verdes que com certeza me acompanham lá do céu.
Meu pai era contador de histórias, que nem eu. Passava horas entretendo uma platéia, formada por amigos e vizinhos, emendando um causo atrás do outro. Eu também sou meio assim, mas nem sempre.
Mas eu lembrava do meu pai, do seu jeito terno, carinhoso, mas muito duro quando se tratava de dar educação aos filhos, de fazê-los irem à escola, exigir comportamento exemplar e, de vez em quando, mas só de vez em quando, dar um bom corretivo com galho de goiabeira. Era aquela surra conversada, dava duas lambadas e aconselhava, depois dava mais duas lambadas, até que o conselho estivesse completo.
Eu tinha 14 anos na época. Era muito estudioso, vivia na biblioteca da escola, mas quando juntava com alguns colegas era um Deus-nos-acuda. A nossa diversão preferida era colar bombinhas de são João nas lâmpadas do colégio, juntar com um cigarro e acender. A explosão só acontecia minutos depois, quando já estávamos bem longe.
O meu pai, quando chamado na escola por algum motivo, dava primeiro uma surra para depois saber do que se tratava. Era o jeito dele de amar a gente, de cuidar, de proteger. Tempos antigos, quando uma boa cipoada não era proibida.
Eu já rabiscava algumas coisas nos meus 14 anos. As professoras gostavam de mim e elogiavam os meus textos. Foi assim que me convidaram para o concurso de melhor frase para o Dia da Árvore. Minha frase foi classificada em primeiro lugar. As professoras não me avisaram, queriam me fazer uma grande surpresa e acabaram conseguindo. A diretora da escola mandou um bilhete para o meu pai dizendo que ele comparecesse no dia seguinte, sem falta, à diretoria, para “tratar assunto sobre o seu filho”. Me deu o papel e me mandou entregar. “Estou frito”, pensei, enquanto nervoso e suando muito, caminhava para casa.
A obediência mandava eu entregar o papel, mas eu antevia a surra que estava por vir. Já era noite quando entreguei o bilhete. Meu pai soletrou com cuidado e em silêncio, não disse nada. Imaginei que estava tudo bem.
De manhã, quando saí para a escola, meu pai estava do meu lado, cara fechada, um galho de goiabeira na mão. Me segurou por um dos braço e me aplicou as primeiras lambadas. Eu não sabia porque apanhava, mas também não chorava, não reclamava, as pernas e costas doíam, mas eu segui firme, afinal alguma coisa eu tinha aprontado. Só parei de apanhar na entrada do portão. Meu pai entrou comigo na diretoria.
Enquanto eu me ardia de dor, a diretora foi explicando pra ele: “É que o seu filho ganhou o prêmio de melhor frase do Dia da Árvore. Eu lhe chamei aqui para pedir que o senhor fizesse a entrega do prêmio pra ele, e que cuidasse muito bem dele, porque no futuro ele vai lhe dar muito orgulho”.
Meu pai olhava pra mim de rabo de olho. Conversava com a diretora, dizia que sim, que eu era inteligente, que faria o que fosse preciso. Eu percebia, no entanto, que ele estava envergonhado pela surra que me deu pouco antes.
Minutos depois saímos da escola, eu e meu pai, lado a lado, mudos, ele cabeça baixa, eu fervendo de raiva. Eu já não sentia a dor nas costas e nas pernas. A minha dor era no coração, dor de menino que apanhou injustamente, dor de quem achava que não era amado pelo pai.
Mas meu pai não era de conversar. Era amoroso, justo, cuidadoso ao extremo com os filhos, mas não sabia traduzir seu amor em palavras. E eu não entendia. E quando estávamos bem perto de casa, passando em frente a uma sorveteria, ele disse a frase que mudaria completamente o que eu estava sentindo:
- Filho, quer tomar um sorvete?
Meu pai era muito pobre. Sorvete era um luxo na nossa vida. Lembro como se fosse agora o gosto do taperebá, enquanto ele me olhava, sem saber se falava alguma coisa, se pedia desculpas. Eu tenho certeza que se eu não aceitasse o sorvete, ele iria chorar.
Quando chegamos em casa já éramos pai e filho. Vínhamos rindo à toa, chutando pedrinhas, contando histórias. Minha mãe estranhou, mas ele entregou, com o maior orgulho do mundo, um corte de tecido, que foi o prêmio dado pela escola.
Minha mãe, com o tecido, mandou fazer uma bonita calça marrom, que usei até virar bermuda e não valer mais nada. Sempre que eu olhava para aquela calça, eu tinha orgulho de mim, da minha família e, principalmente, do pai maravilhoso que Deus me deu.

Joseli Dias é jornalista e escritor