sábado, 12 de setembro de 2009

EXCLUSIVO: PRIMEIRO CAPÍTULO DO ROMANCE MÃE DO RIO

Capítulo 1

- Mas é claro que você só teve um filho, Rosa. Que diacho de arrumação é essa agora?
Quase 18 anos depois, as palavras de Damiana ainda soavam recentes aos ouvidos de Rosa, sempre que se permitia parar um pouco de sua lida diária e contemplar o imenso Rio Amazonas. Observando sua filha Das Dores, já bem crescida e sendo olhada de relance pelos marinheiros, peixeiros e outros habitantes da Vila Maresia, onde moravam, Rosa sentia a brisa do rio misturada com o pitiú de peixes dos mais diversos tipos, que desembarcavam no porto ali próximo. Talvez sua mãe tivesse razão. Talvez tudo não tivesse passado de um sonho ruim, um pesadelo que teimava em voltar à sua mente quando a lua estava mais escura.
Rosa lembrava perfeitamente da dor lacinante que sentiu no ventre, quando os nove meses se completaram e ela entrou em trabalho de parto. Estava bem perto de sua casa quando as dores vieram. Gritou pelo pai, Manduca, que tinha saído para pescar. As dores aumentavam, Rosa gritou pela mãe. Damiana veio correndo, a preocupação estampada nos olhos. Rosa lembra o olhar de desespero da mãe e logo mais atrás, como se já estivesse à espera, a parteira Generosa, fumando seu cachimbo de fumo de rolo, lenço amarrado na cabeça e rugas que pareciam pequenas estradas percorrendo o seu rosto. As duas mulheres, usando toda a força que o desespero pode proporcionar, sustentaram Rosa para que ela pudesse entrar no barraco e com cuidado a colocaram sobre a cama. E foi então que Rosa apagou, como se de repente nada no mundo mais existisse.
Tanto tempo depois, observando os barcos das mais diversas cores ancorados no trapiche e vendo o pai tirar do porão de uma das embarcações suas cubas de peixes para serem entregues aos atravessadores, Rosa tentava refazer mentalmente aquela noite, conforme foi descobrindo aos poucos, a história vindo pedacinho por pedacinho, a muito custo.
Manduca retirava suas redes de pesca enquanto o atravessador gritava para um e outro o preço que estava pagando pelo quilo do peixe e do camarão, que seriam depois levados para os frigoríficos da capital, ajudando a enriquecer comerciantes às custas da miséria dos pescadores. O preço a que vendiam o fruto de seu trabalho, mal dava para o sustento da família e para comprar uma nova rede de pesca de vez em quando.
Manduca recebeu seu dinheiro, conferiu e viu que mais uma vez daria apenas para pagar as mercadorias que pegava fiado na venda do Seu Ari, única da vila, que parecia sempre estar à beira da falência, mas que por muitos anos matava a fome da sua família e de tantas outras que, em época de piracema, quando os peixes estão desovando e a pesca é proibida, não têm de onde tirar o sustento. O pescador calculava mentalmente suas despesas enquanto observava a filha, mais adiante, olhar distante no rio. Rosa parecia estar desligada do mundo. Seus olhos fitavam a imensidão das águas, o navio estrangeiro que passava levando manganês, ouro e madeira. Mais adiante, como se fossem pontinhos coloridos, as embarcações, balançando nas ondas como barquinhos de papel feitos pelas crianças em dias de chuva.
Rosa era a única filha de Manduca. Damiana, sua esposa, nunca lhe dera um menino. E de Rosa nasceu Das Dores, ou Aparecida das Dores, seu nome de batismo. Manduca, sempre que voltava da pesca, levava algum agrado para a neta, fosse um peixe escolhido a dedo, fosse uma pulseira de miçanga comprada no regatão ou um doce de fruta oferecido por seu Ari, que ele não comia, embora estivesse com fome, e escondia cuidadosamente no bolso. Ele ainda lembrava muito bem o dia do nascimento da neta. Pouco antes, tinha ido à cantina do Seu Ari, levar alguns peixes para trocar por despesa. Seu Ari era um cearense que chegou em Vila Maresia há mais de 20 anos. Ali montou um comércio e, ao que parece, nunca mais pensou em voltar à sua terra natal, principalmente depois que a esposa foi embora, deixando com ele o único filho que tiveram. Naquela noite seu Ari limpava a cantina quando Manduca chegou.
– Eh, Seu Ari, como vão os negócios?
– Ei, Manduca, vamos entrando. Os negócios vão do jeito que você está vendo. Pouca gente e muito fiado. Trouxe peixe hoje?
- Um pouquinho, né, Seu Ari, que o peixe tá meio fora de época. Mas o seu tá aqui, ó – disse Manduca, levantando uma cambada de piramutaba.
– Esses tão bonito mesmo. Quanto é?
– Não se preocupe não, que é o mesmo de sempre. A gente vai vendo o que falta em casa e vai trocando por açúcar, café, vai levando do jeito que Deus manda.
– Eu sei bem como é. As coisas aqui estão ruins, mas lá pelas bandas da sua casa também não estão boas, principalmente agora, que a sua filha está quase parindo. É mais uma boca pra sustentar.
– Se é, mas também, uma boca a mais, uma a menos, não há de fazer diferença. Eu quero ver é a família crescer, o meu neto correndo por aí...
- E o pai, descobriu quem é?
– Que nada. A Rosa não dá uma palavra sobre o assunto.
– O pessoal da vila tá falando que é do boto.
– Se é do boto eu não sei. O que eu sei, mesmo, é que eu vou criar esse menino. Se o pai aparecer, bem. Senão, não faz falta. Até, seu Ari.
– Até, Manduca, e dá lembrança pra Dona Damiana.
Manduca deixou seu Ari e enfrentou a noite de lua cheia que caía sobre a vila. Com cuidado, vasculhava com os olhos os pontos mais escuros, atento a qualquer ruído. Ele não tinha medo dos animais que habitavam os locais mais escondidos da vila. Onça, gato maracajá, cobras e outros bichos peçonhentos não o assustavam. Seus pensamentos estavam voltados para a Matinta Perera, assombração que deu de aparecer em Vila Maresia há alguns anos e já tinha assustado muita gente. Esta noite, no entanto, tudo parecia muito calmo. Até os pássaros noturnos permaneciam quietos nas árvores.
Naquele exato momento, Rosa estava parindo. Damiana e Generosa providenciavam água quente, panos limpos e tesoura para cortar o cordão umbilical da criança. Rosa, embora com muita dor, parecia não entender o que estava acontecendo. O rosto crispado, o corpo banhado em suor, a respiração ofegante, o grito de dor e alívio misturando-se com o choro da criança que acabava de nascer. Generosa respirou aliviada. Rosa, cansada, sentiu que estava sendo levada pelo sono. Mas lá, no fundo de sua consciência, ainda parecia ouvir a voz da parteira Generosa.
- Deus seja louvado. Nasceu o bebê! É uma menina! E olha só como é bonita. Toma, Damiana, segura tua neta, mulher, que eu ainda tenho que ver se está tudo certo com a mãe. Essas meninas estão tendo filho cada vez mais cedo. Daqui a pouco vão nascer parindo...
– Eu que o diga, Generosa. E o pior é que a carga cai toda pra cima dos pais. Quem faz o filho, ó, se manda pra não sustentar. Às vezes eu acho que.... O que tu estás fazendo, Generosa?
– Tem outro bebê aqui!
– O que?
– Tem outro bebê aqui, me ajuda!, traz mais água quente e panos limpos, rápido!
Teria sido um sonho ou Rosa escutou mesmo o choro de uma outra criança? Rosa não sabia dizer. A única coisa que sabia e que tinha a mais profunda certeza é que o choro que ouviu foi de um menino. Uma certeza que a acompanharia para o resto de sua vida. Foi pensando nisso que voltou a adormecer profundamente. Acordou horas depois com a sensação de um vazio no coração, uma tristeza que teimava em crescer. No quarto iluminado apenas por uma lamparina e pela luz da lua que entrava pela janela, Rosa viu Damiana, com uma criança nos braços.
– Mãe! Mãe!
- Que foi, minha filha, não está passando bem?
– Eu tive dois bebês, mamãe, cadê o meu outro filho?
– Que outro filho, Rosa, tu tá variando ou o parto subiu pra tua cabeça? Acaba com a besteira, tu só teve esse filho aqui, ó. O que tu tem, Rosa? Para de chorar, segura um pouco tua filha.
Manduca, que nesse momento já entrava pela porta da cozinha, com uma enfiada de Aracu, estranhou a tensão e o choro entre mãe e filha.
- O que tá acontecendo aí, Damiana?
– A Rosa acabou de parir.
– Ué, então eu quero ver o meu neto. Quero ver se o caboquinho é macho mesmo igual ao avô.
– Neto não, neta, que nasceu uma menina. E agora ela tá dizendo que teve dois filhos, eu não sei o que fazer, Manduca.
- Te acalma, minha filha, foi só um sonho ruim... Ô Damiana, traz um caldo pra ela, que é pra dar mais leite nos peitos... Sossega, minha Rosa, às vezes a gente imagina coisas, mesmo.
Manduca, de alguma forma, percebeu que havia algo errado naquela noite. Talvez estivesse influenciado pela viagem tensa na escuridão, da cantina do seu Ari até sua casa. Talvez a forma com que Damiana negou a outra criança, o choro de Rosa na certeza de terem nascido gêmeos, o fato é que a partir daí alguma coisa estava mudando dentro dele. O que Manduca não sabia é que naquele momento, nas correntezas leves do igarapé, um bote de madeira, sem remador, seguia sem rumo, vez em quando diminuindo a velocidade ao esbarrar nas tronqueiras dos mururés. E as horas iam passando, lentas, como se Deus não tivesse pressa de iniciar o dia.
Aquela, particularmente, foi uma noite longa. Rosa chorava muito, lamentava-se e passou mal várias vezes. Mesmo de madrugada, Manduca ainda estava acordado, os olhos abertos na escuridão do quarto, um cansaço esquisito que não lhe permitia dormir. Podia ouvir nitidamente o som dos grilos lá fora, o uirapuru cantando triste no meio da floresta, as águas correndo no rio que passava mais adiante e o som dos botos tucuxis, guinchando e saltando por entre as correntezas.
Damiana, deitada em uma rede próxima de Rosa, também não conseguia pregar o olho. Estava tensa, rezava de vez em quando, pedindo proteção à filha e à criança que acabara de nascer. Olhando Rosa, que só conseguiu dormir depois de umas boas xícaras de chá de cidreira e camomila, lembrava do diálogo que teve com Generosa. A parteira estava curiosa, afinal Rosa era uma menina direita, não era como tantas que ficam pela beira do cais se agarrando com os barqueiros. Tinha só 16 anos, não tinha namorado, não tinha amigos, vivia em casa, era realmente muito esquisito, dizia Generosa. Foi então que Damiana resolveu contar para a amiga a sina da filha.
– Tu te alembra, Generosa, daquela festa no terreiro do compadre Alfredo?
– Lembro, sim, que tem a festa? – indagou Generosa, cachimbo na boca.
– Pois então. Foi de lá desta dita festa que a Rosa voltô de bucho.
– Ora, Damiana, vai ver que ela ficou prenha foi de algum desses caboclos da vila, afinal não é novidade nenhuma isso acontecer por aqui.
– Foi de barqueiro não. Eu vou te contar porque todo mundo está comentando mesmo e tu vai saber pela minha boca e não pela boca dos outros.
Então Damiana contou para a amiga o que a própria filha já havia lhe contado antes e que ela mesma custou a acreditar. Rosa tinha ido para a festa muito cedo, porque estava ajudando a mulher de Alfredo a preparar os comes e bebes. Depois que tudo estava pronto, arrumou-se com esmero, afinal, mesmo sendo muito pobre, gostava de andar bonita. Rosa, na festa, percebeu que os olhares de muitos homens estavam voltados para ela. Aos 16 anos, já era uma bela moça. De estatura média, sobressaía-se entre as outras meninas pela sua pele morena lustrosa, que lhe dava um aspecto bronzeado sem a necessidade de ficar exposta ao sol. O rosto redondo, os olhos castanhos e os cabelos muito negros, que lhe caíam até a altura dos ombros, contrastavam com o vestido vermelho que usava, presente de seu pai Manduca em uma das muitas vezes em que ele, economizando como podia, conseguia fazer compras no regatão. Rosa sabia que era bonita. Sabia também que já provocava desejo nos homens. Afinal, quando ia ajudar o pai a tirar alguma mercadoria do barco, sempre ouvia assobios dissimulados dos pescadores. Ela achava divertido, mas não dava trela.
Rosa cresceu ouvindo a mãe contar histórias de fadas, príncipes encantados e princesas que encontravam sua grande paixão. Muitas das vezes, deitada na rede, à noite, ela ficava imaginando que qualquer dia surgiria por ali um homem muito bonito como os dos contos de fada que a mãe contava. Ao vê-lo, ela saberia na hora que aquele homem seria o grande amor de sua vida. E então eles viveriam felizes para sempre.
Talvez por imaginar essas coisas, Rosa não respondia aos galanteios dos rapazotes que a cortejavam, também não vivia como suas amigas, batendo pernas para o outro lado da vila para paquerar os barqueiros ou os marinheiros vestidos de branco, que aportavam vez por outra por ali enquanto os navios estrangeiros eram abastecidos com minérios. Mas naquela noite, na festa de Alfredo, Rosa tinha uma sensação estranha, um sentimento esquisito dentro do peito, uma angústia que não sabia de onde vinha e nem porquê.
A festa estava muito animada. A aparelhagem de som, vinda da capital, quase fazia tremer o terreiro, de tão potente que era. Estava tão bom que ela prontamente aceitou o convite de um rapaz para dançar, e depois de mais outro. Tinha muita facilidade de rodopiar pelo salão, as pernas, ágeis, acompanhando o par na coreografia do brega. Rosa se divertia aceitando o desafio das colegas para uma outra dança, os pares disputando quem gingava mais, quem inventava mais passos. A noite quente, as danças encarrilhadas e o cansaço levaram Rosa a afastar-se de seus amigos em busca de um lugar mais fresco. Quando deu por si estava na cabeça do trapiche, sentindo o vento agradável que vem com a maré cheia. Ao longe, Rosa observava as luzes dos barcos na escuridão da noite. Eram como pequenos vaga-lumes em meio ao grande rio Amazonas. Seu pai, com certeza, estava por ali, pescando com seus companheiros. Rosa, em pensamento, pediu proteção da mãe do rio para Manduca e para todos aqueles homens que buscavam o sustento para suas famílias.
Do terreiro de Alfredo a música chegava ao trapiche, embalando os pensamentos de Rosa. Foi naquele momento, como se tivesse surgido do nada, que ele apareceu. Na cabeça do trapiche, um homem alto, muito bonito e perfumado, trajando paletó branco e chapéu de carnaúba, os olhos de um azul muito profundo. Esquisito agora que Rosa pensava nisso, descobrir que em nenhum momento ele tirara o chapéu, nem mesmo para cumprimentá-la. Rosa não perguntou seu nome. Sentia-se seduzida de uma forma avassaladora, atraída de uma maneira que nunca havia sentido antes. Não reclamou e nem tentou se desvencilhar quando aquele homem a pegou pela mão e desceu com ela até a areia da praia. Suas roupas, como que por magia, foram ficando no caminho, o primeiro beijo sufocado por tantos outros, cada vez mais ansiosos, mais sensuais, a urgência da entrega tornando-se insuportável, a primeira vez do fazer amor alcançando-a de forma arrebatadora, e repetindo-se mais e mais em uma noite que parecia não ter fim, até que, esgotados, dormiram abraçados na areia, a lua surgindo por entre os açaizais.
O sol já estava nascendo e os pescadores retornavam com suas canoas, quando Rosa acordou, sozinha e nua, a maré enchendo e tocando-lhe os pés. Sentia um estranho gosto de mar na boca e no coração uma terrível certeza: estava grávida.
Ainda nos primeiros meses de gravidez, enfrentando a fúria de Manduca e os interrogatórios de Damiana, Rosa percebeu que aquela gravidez não seria normal. As dores no ventre e os enjôos eram diários, sem intervalos, a família preocupada e buscando ajuda nos chás de ervas da Tia Zaide, única benzedeira da vila, que minoravam mas não impediam que os problemas voltassem.
Foi por mero acaso que Rosa descobriu como fazer cessarem as dores. Certa vez, quando os alimentos já não se mantinham em seu estômago, quando o corpo apresentava uma fragilidade preocupante e já se tornava difícil manter a gravidez, Rosa resolveu ir até a beira do rio, mais para manter o corpo em movimento do que propriamente por outra razão. Então ela percebeu que quanto mais se aproximava das águas, as suas forças iam recuperando-se lentamente, as dores cessando, a ânsia de vômito desaparecendo por completo. Rosa descobriu ainda que naquele local a criança que estava em seu ventre parecia adquirir mais saúde. Era como se lhe afagassem o ventre, ninando a criança e transmitindo-lhe conforto e segurança. Daí em diante, os dias de Rosa foram sempre nas proximidades do rio. Os pais se preocupavam, reclamavam, advertiam para possíveis perigos, mas Rosa sabia que estava segura ali. Então seus pais, quando perceberam que sua saúde estava sendo restabelecida, pararam de implicar, guardando os temores para quando estivessem sozinhos, conversando sem Rosa ouvir. E assim se passaram os nove meses, até Rosa entrar em trabalho de parto.
- Pois então, mana, a história é essa. Se é invenção dela, eu não posso dizer, porque não estava lá. Não é realmente uma história muito estranha?
- Se é, bota estranha nisso – disse Generosa, antes de recolher seus apetrechos de parteira e retornar para sua casa, do outro lado da vila.

(MÃE DO RIO - ROMANCE - JOSELI DIAS/GILVAM BORGES/ANGELA NUNES)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A COBRA SOFIA

Há muito tempo, em uma aldeia próxima à ilha de Santana, é que vivia Icorã, uma índia de olhos cor de mel e muito linda. A beleza da índia, incomparável entre todas as mulheres da tribo, transformava em suplício sua felicidade. É que pela formosura Icorã era cortejada pelos bravos, ao mesmo tempo em que estava destinada ao deus Tupã quando estivesse em idade apropriada. Prisioneira de sua beleza, a indiazinha vivia muito triste, raras vezes deixando a oca. Quando o fazia era para dirigir-se à beira de um grande lago, à noite, para contar à lua de seu sofrimento.
Certa noite, enquanto banhava-se ao luar, Icorã foi avistada pelo boto Tucuxi, que perdeu-se de amores por ela. Transformando-se em um cisne, Tucuxi aproximou-se da indizinha, possuindo-a através de um encantamento. Meses depois Icorã sentiu a prenhez em suas entranhas e só então descobriu que aquele cisne lindo com quem brincara no lago era na verdade um boto.
Mortificada de remorsos, Icorã embrenhou-se nas matas, permanecendo longe de tudo e de todos para ter a criança. Quando as dores vieram e a indiazinha teve seu rebento, deu-lhe o nome de Sofia e atirou a criança no lago, na esperança de que ela se afogasse e ninguém tomasse conhecimento de seu pecado. Depois retornou à aldeia, como se nada tivesse acontecido. O boto Tucuxi, arrependido do que fez, transformou a criança em uma cobra d’água, evitando assim a sua morte.
Muito tempo passou e certo dia, quando Icorã encontrava-se à beira do grande lago, sentiu as águas se revolverem e viu quando uma cobra imensa, de estranhos olhos cor de mel, deixou seu refúgio. Era a cobra Sofia, que procurava águas mais profundas para acomodar-se. Os sulcos deixados durante o trajeto, dizem as lendas, formaram o Rio Matapi.
Sofia, acreditam os mais antigos, parou para descansar onde hoje fica localizado o porto de Santana. Há alguns anos, uma grande parte da plataforma desabou. Dizem que foi a cobra Sofia que moveu-se durante o sono.
Joseli Dias – Do livro Mitos e Lendas do Amapá – 3ª Edição)