quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O NATAL MAIS FELIZ DA MINHA VIDA

Lembro que Papai Noel estava na esquina
Em frente àquela loja fina
Onde meninos pobres não podiam entrar
Eu sentava tristonho na calçada
E observava a loja lotada
De gente que chegava pra comprar

E via bichinhos, bolas, aviões
Fortes apaches com os seus canhões
E soldadinhos prontos para atirar
E via trens, casinhas e carrinhos
Ioiôs e jogos de botão
Mas meu pai só tinha um dinheirinho
E tudo aquilo custava um dinheirão

E o Papai Noel ali, barrigudo,
De barbas brancas e sisudo
Não dava sequer um sorriso
Mesmo assim as crianças o cercavam
E pelas portas da loja entravam
Como se estivessem indo ao paraíso

Lembro que naquele dia uma senhora
Ao tropeçar calçada a fora
Chegando mesmo a soltar um palavrão
Deixou cair os pacotes que levava
E os brinquedos bateram na calçada
E esparramaram-se pelo chão

Assustada com aquele quase tombo
E vendo-me por sobre os ombros
Sozinho a observar Papai Noel
Olhou em meus olhos com tristeza
E fazendo daquele gesto uma certeza
Ofertou-me um embrulho de papel

Sem saber muito bem o que fazia
Agradeci à senhora que sumia
Misturando-se logo à multidão
E com o peito batendo em disparada
Disparei eu também pra minha casa
Com o presente apertado ao coração

Era um carrinho vermelho de corrida
Sem piloto e com uma roda partida
Mas que deu a um garoto pobre
O natal mais feliz de sua vida.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A AVE GIGANTESCA

Seu Manoel é um sujeito bonachão, de bem com a vida, que passa as tardes no bar, tomando pinga, enquanto espera sua aposentadoria de dois salários mínimos, fruto de vários anos como funcionário público. Seus passatempos preferidos, além da caninha, são o de pescar e passar horas conversando.
Seu Manoel não é sujeito de polemizar as questões, muito pelo contrário, ouve tudo com a maior atenção e somente quando percebe uma informação errada ou exagero, dá algum palpite na conversa.
Antigo morador do Corre-Água, conhece os habitantes pelos nomes, assim como a seus filhos e netos, sabem quem é “gente boa”, cultiva as amizades e sempre está em visita a alguma casa. Foi em uma dessas ocasiões que visitou a residência do Seu Jarbas, afamado mentiroso do lugar, e dele, entre um cafezinho e um cigarro de palha, ouviu uma história que lhe pareceu muito esquisita.
Seu Jarbas lhe disse que certo dia estava no mato, perseguindo o que parecia ser um veado, quando no meio da floresta, um local onde poucas pessoas costumam chegar devido à distância, percebeu uma árvore. “Mas não era uma árvore comum”, contou-lhe o loroteiro. Era uma árvore de tamanha largura que com certeza cem homens, de mãos dadas, não conseguiriam abraçá-la. Seus galhos eram quilométricos, enormes mesmos, e as folhas imensas, que apenas uma daria para cobrir uma cabana. Qual a altura da árvore? Não dá nem pra imaginar, porque chegava até as nuvens. “É a mais pura verdade, Seu Manoel. É uma pena que na volta eu perdi a trilha do matão onde encontrei a árvore”, finalizou Seu Jarbas, gabando-se.
Seu Manoel coçou a barba rala e procurou não desmerecer o amigo. Mas, antes de ir, contou um caso que se passou, certo dia, quando estava sentado na varanda de seu sítio.
“Eu estava ali, pensando na vida, quando o céu de repente escureceu. Olhei para cima e, o que vi? Era uma ave de plumagem colorida como o arco-íris. Mas quem me dera que fosse um pássaro comum. Este era enorme, gigantesco mesmo. Suas asas eram tão grandes que encobriam o sol. E a calda? Era tão comprida que durante pelo menos meia hora passou em minha frente aquela procissão de plumagem sem fim”.
- Puxa, Seu Manoel. Isso só pode ser uma aberração da natureza. Afinal, pra que Deus criaria uma ave assim tão grande?
- Com certeza para pousar na sua árvore – emendou Seu Manoel.

Joseli Dias
do livro O Conto do Vigário

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

ARMANDO COM ESMAELINO

Esmaelino era um pedreiro afamado que morava bem próximo de casa. Em pleno inverno, no entanto, atravessava tempos bicudos. Sua mulher e seus filhos só não passavam fome porque a sogra, vez em quando, mandava um pouco de fubá, café, açúcar e até mesmo um naco de carne. Mas as coisas começaram a piorar quando a velha adoeceu e parte do dinheiro de sua aposentadoria foi gasta em remédios e despesas médicas. Estava Esmaelino pensando na vida, quando foi chamado pelo seu Armando, homem de posses, para realizar alguns serviços em sua casa. Seu Armando tinha fama de trambiqueiro, mas Esmaelino, que havia se mudado para o bairro há pouco tempo, não sabia de nada e lá se foi na maior boa vontade.
Seu Armando explicou o serviço, acertou o preço e providenciou o material. Eram arremates difíceis, mas Esmaelino pouco se importava. Trabalharia dia e noite, se fosse preciso, mas terminaria no máximo em dois dias. O dinheiro daria para manter o sustento de sua família por pelo menos uma semana, tempo suficiente para que providenciasse outro “bico”.
Tudo pronto, Seu Armando fez questão de inspecionar o serviço. Achou tudo ótimo, beleza mesmo. Esmaelino ouvia tudo, contente pelos elogios, e mais ainda porque iria colocar algum dinheiro no bolso. Seu Armando explicou então que voltasse à tardinha para que acertassem as contas, pois iria até o banco retirar a quantia para o pagamento.
Esmaelino já se imaginava no supermercado, cestas de compras nas mãos. Levaria primeiro leite e araruta para o menorzinho. Em seguida escolheria o que a esposa desejasse para o rancho da semana, Levaria também alguns doces e, quem sabe, passaria na loja para comprar um corte de chita para a mulher, que já estava com as roupas bem surradas.
Ao chegar na casa tocou a campainha e foi recebido pela empregada Nicinha, sendo informado que Armando tinha viajado e só voltaria dali a 15 dias. Esmaelino não acreditou no que ouviu. Ficou furioso, zangado mesmo por ter sido enganado pelo patrão. A noite, ao ouvir o filho chorar de fome, jurou que quando Armando chegasse, iriam ajustar as contas de uma maneira ou de outra, não importando as conseqüências.
Os dias se arrastaram, Esmaelino se virava como podia par ir enganando a fome, até que certa tarde soube que Armando havia retornado. “Vai ser hoje”, disse para sim mesmo, enquanto seguia para a casa, disposto a arrancar seu dinheirinho nem que fosse na marra.
Chegou, tocou a campainha e Nicinha veio atender. Esmaelino não se deu ao trabalho de dizer o que queria. Empurrou a porta, atravessou a sala e já se precipitava pelo corredor quando topou com Armando, que naquele momento saía do quarto. Iniciou os xingamentos ali mesmo:
- O senhor me enganou, disse que ia me pagar e agora está me enrolando? Eu quero é o meu dinheiro já, senão vou...
E seu Armando, com uma voz muito mansa e tranqüila:
- Calma, Esmaelino, Calma...
- Mas seu Armando...
- Calma, Esmaelino, pense comigo: As coisas não se resolvem melhor quando todos mantemos a calma? É claro que vou lhe pagar agora, mas não teria sido melhor se você tivesse chegado com educação? Você tocaria a campainha, a Nicinha iria atender e diria, evidentemente, que eu estava em casa, porque eu não costumo me esconder. Você entraria, sentaria ali naquele sofá confortável, nós tomaríamos um cafezinho juntos, eu lhe pagaria, apertaríamos as mãos e seríamos bons amigos. Não seria melhor assim?
- Claro, seu Armando, mas é que...
- Pois para provar que eu não guardo rancor, vou fingir que não aconteceu nada e você entra de novo por aquela porta, desta vez com bons modos. Faça isso, meu filho, faça...
E Esmaelino foi até lá fora, ajeitou a camisa e educadamente tocou a campainha. Quando Nicinha veio atender, usou a voz mais educada possível:
- O Doutor Armando está?
- Não, acabou de sair correndo pela porta dos fundos – sentenciou a empregada.

Joseli Dias
do livro O Conto do Vigário

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A LAMPARINA E O LAMBARI

Durante vários anos andei pelo interior, pesquisando lendas para a publicação de um livro. Nas minha andanças tive contato com os tipos mais estranhos, que diziam ter visto assombrações, outros conheciam encantos milagrosos e outros, ainda, eram mais encantadores por serem típicos e engraçados: os mentirosos.
Lá no Corre-Água, próximo ao distrito de São Joaquim do Pacuí moram Seu Francisco e Seu Jarbas, vizinhos e compadres, que na cata de coisa melhor para fazer, contam lorotas um para o outro. E o pior é que juram pela saúde dos filhos e pelo amor da mãe, que trata-se da mais pura verdade.
Um certo dia a disputa por quem aplicava uma lorota de bom tamanho terminou empatada. Seu Francisco contou a Jarbas que na noite anterior foi até o rio Corre-Água, pescar. Antes, na falta de óleo para sua lamparina, retirou um pouco de banha de traíra e experimentou acender o pavio. E não é que a coisa funcionou? Mas esse, afinal, ainda não era o melhor da história. Eis que quando tentava fisgar um jeju, atrapalhou-se e jogou a lamparina no rio. A bicha afundou, afundou... mas vejam só, já que o óleo era de peixe, que por sua vez vive na água, a lamparina não apagou. “Está lá para quem quiser ver”, concluiu seu Francisco, dando uma pitada no cigarro de palha.
Seu Jarbas não questionou. Tecendo seu próprio cigarrinho, disse acreditar piamente na história, mas também resolveu contar um fato estranho que lhe havia acontecido dias antes. Estava ele no mesmo rio, tentando apanhar um pirarucu de mais de metro que havia percebido ali dias antes. Estava com o arpão em punho, esperando o peixão vir à tona para respirar. De repente percebeu o movimento do peixe e arpoou. Acertou em cheio, mas qual sua surpresa? O bicho que brigava com o arpão não era um pirarucu. Era um lambari. Mas não era apenas um lambari. Era um “senhor lambari”, com quase um metro de tamanho e pesando mais de cem quilos. E o danado tanto brigou que conseguiu fugir do arpão quando já estava quase apanhado.
- Mas um lambari, compadre Jarbas? Todo mundo sabe que o lambari é do tamanho de uma sardinha...
- Pois é, compadre, não sei porque cargas d’água este era enorme, grande mesmo. Juro pela memória da minha mãe, já falecida, que Deus a tenha.
Terminando a conversa os dois compadres se despediram e foram dormir. Já era madrugada quando Seu Francisco bateu à porta de Seu Jarbas. Este atendeu, ainda sonolento e recebendo de pronto a proposta do vizinho e compadre:
- Olha, Seu Jarbas, eu não consigo dormir, portanto vamos fazer o seguinte: o senhor diminui o tamanho do seu lambari, que eu apago a minha lamparina.

Joseli Dias
Do livro o Conto do Vigário

O CHEM

Eu era editor de polícia de um jornal local quando o repórter que cobria a delegacia solicitou demissão para engajar-se na Marinha, como recruta. A diretoria do jornal bem que tentou fazê-lo mudar de idéia, acrescentando um bom aumento em seu salário e certas regalias, mas o rapaz estava irredutível. Queria ser marinheiro e partiu no dia seguinte, depois de um porre homérico com os amigos no Betão, bar que vendia fiado aos jornalistas do setor.
Na época o número de profissionais de imprensa era bem reduzido e os melhores estavam contratados com bons salários, o que dificultava convencer alguns deles a entrar para nossa equipe. A única maneira foi arrumar um estagiário e tentar transformá-lo em repórter para preencher a lacuna. Foi assim que chegou José Messias, que por beber muito, ter várias mulheres, mentir demais, desmerecendo assim ostentar o título de “Cristo”, passou a ser chamado de “Profeta” pelos colegas de redação.
“Profeta” até que levava jeito. Garoto novo, não media esforços para conseguir matérias e começou a ganhar elogios tanto dos colegas como da própria direção do jornal, que o contratou um mês depois. Ele ficou conhecido rapidamente, ganhava tapinhas nas costas, mas andava sempre duro, já que o pouco que ganhava gastava com mulheres na zona do Buritizal. O engraçado, ele dizia, é que os colegas faziam a mesma coisa e sempre tinham o do cigarro e trocados para o lanche. Foi então que lhe explicaram sobre o “chem”.
- A gente vai fazer uma determinada matéria que envolva gente importante e aproveita para elogiar sutilmente este ou aquele sujeito, ou mesmo a empresa deles. Os elogiados ficam tão satisfeitos que sempre nos oferecem “o da cerveja”, explicou alguém ao “Profeta”, que ficou surpreso.
- Quer dizer que se eu elogiar alguém ou uma empresa, ganho dinheiro? Isso é ótimo e vou começar a faturar agora mesmo...
E foi assim que o “Profeta” saiu para uma ronda diária pela Delegacia de Acidentes e voltou, 30 minutos depois, eufórico e dizendo que estava pronto para fazer o seu “Chem”. Sua matéria foi devolvida com muitos esporros porque dizia o seguinte:
“... O Chevete e o Fusca colidiram em frente à Auto Tintas Maranata, onde você encontra pincéis, tintas automotivas, lixas, solventes, massas, e tem um atendimento de primeira. É só falar com o dono.
(Do livro O Conto do Vigário)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

CALÇA MARROM, UM PAI ORGULHOSO

Esta semana ganhei um pequeno prêmio literário. Coisa boba, mas que me encheu de orgulho. No Teatro das Bacabeiras, onde teve a solenidade de entrega, enquanto todos os meus amigos comemoravam, eu lembrei do meu pai. Queria que ele estivesse lá, junto comigo, me olhando entre orgulhoso, feliz e tímido, me fitando com aqueles olhos verdes que com certeza me acompanham lá do céu.
Meu pai era contador de histórias, que nem eu. Passava horas entretendo uma platéia, formada por amigos e vizinhos, emendando um causo atrás do outro. Eu também sou meio assim, mas nem sempre.
Mas eu lembrava do meu pai, do seu jeito terno, carinhoso, mas muito duro quando se tratava de dar educação aos filhos, de fazê-los irem à escola, exigir comportamento exemplar e, de vez em quando, mas só de vez em quando, dar um bom corretivo com galho de goiabeira. Era aquela surra conversada, dava duas lambadas e aconselhava, depois dava mais duas lambadas, até que o conselho estivesse completo.
Eu tinha 14 anos na época. Era muito estudioso, vivia na biblioteca da escola, mas quando juntava com alguns colegas era um Deus-nos-acuda. A nossa diversão preferida era colar bombinhas de são João nas lâmpadas do colégio, juntar com um cigarro e acender. A explosão só acontecia minutos depois, quando já estávamos bem longe.
O meu pai, quando chamado na escola por algum motivo, dava primeiro uma surra para depois saber do que se tratava. Era o jeito dele de amar a gente, de cuidar, de proteger. Tempos antigos, quando uma boa cipoada não era proibida.
Eu já rabiscava algumas coisas nos meus 14 anos. As professoras gostavam de mim e elogiavam os meus textos. Foi assim que me convidaram para o concurso de melhor frase para o Dia da Árvore. Minha frase foi classificada em primeiro lugar. As professoras não me avisaram, queriam me fazer uma grande surpresa e acabaram conseguindo. A diretora da escola mandou um bilhete para o meu pai dizendo que ele comparecesse no dia seguinte, sem falta, à diretoria, para “tratar assunto sobre o seu filho”. Me deu o papel e me mandou entregar. “Estou frito”, pensei, enquanto nervoso e suando muito, caminhava para casa.
A obediência mandava eu entregar o papel, mas eu antevia a surra que estava por vir. Já era noite quando entreguei o bilhete. Meu pai soletrou com cuidado e em silêncio, não disse nada. Imaginei que estava tudo bem.
De manhã, quando saí para a escola, meu pai estava do meu lado, cara fechada, um galho de goiabeira na mão. Me segurou por um dos braço e me aplicou as primeiras lambadas. Eu não sabia porque apanhava, mas também não chorava, não reclamava, as pernas e costas doíam, mas eu segui firme, afinal alguma coisa eu tinha aprontado. Só parei de apanhar na entrada do portão. Meu pai entrou comigo na diretoria.
Enquanto eu me ardia de dor, a diretora foi explicando pra ele: “É que o seu filho ganhou o prêmio de melhor frase do Dia da Árvore. Eu lhe chamei aqui para pedir que o senhor fizesse a entrega do prêmio pra ele, e que cuidasse muito bem dele, porque no futuro ele vai lhe dar muito orgulho”.
Meu pai olhava pra mim de rabo de olho. Conversava com a diretora, dizia que sim, que eu era inteligente, que faria o que fosse preciso. Eu percebia, no entanto, que ele estava envergonhado pela surra que me deu pouco antes.
Minutos depois saímos da escola, eu e meu pai, lado a lado, mudos, ele cabeça baixa, eu fervendo de raiva. Eu já não sentia a dor nas costas e nas pernas. A minha dor era no coração, dor de menino que apanhou injustamente, dor de quem achava que não era amado pelo pai.
Mas meu pai não era de conversar. Era amoroso, justo, cuidadoso ao extremo com os filhos, mas não sabia traduzir seu amor em palavras. E eu não entendia. E quando estávamos bem perto de casa, passando em frente a uma sorveteria, ele disse a frase que mudaria completamente o que eu estava sentindo:
- Filho, quer tomar um sorvete?
Meu pai era muito pobre. Sorvete era um luxo na nossa vida. Lembro como se fosse agora o gosto do taperebá, enquanto ele me olhava, sem saber se falava alguma coisa, se pedia desculpas. Eu tenho certeza que se eu não aceitasse o sorvete, ele iria chorar.
Quando chegamos em casa já éramos pai e filho. Vínhamos rindo à toa, chutando pedrinhas, contando histórias. Minha mãe estranhou, mas ele entregou, com o maior orgulho do mundo, um corte de tecido, que foi o prêmio dado pela escola.
Minha mãe, com o tecido, mandou fazer uma bonita calça marrom, que usei até virar bermuda e não valer mais nada. Sempre que eu olhava para aquela calça, eu tinha orgulho de mim, da minha família e, principalmente, do pai maravilhoso que Deus me deu.

Joseli Dias é jornalista e escritor

Não faço mais negócios com perema

Tá decidido. Não faço mais negócios que envolvam peremas como forma de pagamento. Eu sei que os eco-chatos vão criticar meu paladar excêntrico, mas convenhamos: não dá para resistir a uma bela perema guisada, com pimenta de cheiro, arroz branco, farofinha e um açaí bem gelado. Na falta do açaí, costumo substituí-lo por uma dose de pinga para rebater o almoço.
Eu devo explicar que o fato de desistir das peremas nada tem a ver com consciência ecológica, porque essa degustação só é feita uma ou duas vezes no ano, quando viajo pelo interior, onde a quantidade de quelônios é farta e não há grandes alterações no meio ambiente. Na verdade, foi a cidade que me fez desistir. Se há um deus das peremas, talvez tenha o dedo dele nessa questão, porque, nas duas vezes em que eu pensei que as bichinhas iriam parar na minha panela, me enganei redondamente.
Na primeira vez estávamos eu e a professora Angela Nunes, minha esposa, a caminho do Curralinho, onde um amigo nosso tem um belo terreno de frente pro rio, farto em tucunarés. Eu gosto muito de pescar, então no domingo preparei o molinete, escolhi as iscas artificiais e seguimos pra lá. Íamos pela rodovia AP-10, quando logo depois de passar a lixeira pública, uma placa me chamou atenção:
BAR DA VIÚVA A 300 MTS.
Uma seta indicava que era só seguir um ramal que chegava lá.
Minha curiosidade falou mais alto e resolvemos conhecer rapidamente o local. Ao chegarmos lá, descobrimos que se tratava apenas de um barzinho muito mal ajambrado, com música brega e vários bêbados. Nem descemos do carro. Fazendo a curva de volta, fomos parados por um pinguço.
- Você vão pra lá? Me dão uma carona?
Eu disse que não, que não dava porque ia parar logo mais adiante, mas ele insistiu:
- Eu moro logo ali na frente. Se vocês me levarem, eu dou duas peremas que tenho guardadas lá em casa.
Falou em perema já viu, né?. Nem liguei pra minha mulher reclamando, mandei o cara entrar e levantei poeira na estrada. Quando chegamos na casa ele prontamente agradeceu e entrou rapidamente.
Eu fiquei lá, esperando ele voltar com as peremas e, como isso não aconteceu, businei pra ver se aparecia alguém. Apareceu. E era uma mulher zangada, maltratada pelo tempo, veio logo esculhambando.
- Vocês estavam com o sujeitinho, é?
Disse que não, que só tinha dado uma carona e esperava a perema de pagamento.
- Perema? Aqui não tem perema nenhuma. Ele sempre diz isso quando quer carona, disse a mulher, voltando a entrar na casa e batendo a porta, zangada.
O chato não foi ter perdido as duas peremas. O chato, mesmo, foi agüentar minha mulher rindo do caso enquanto, de cara fechada, pescava. Passei vários dias ouvindo ela contar para os parentes o acontecido.
Meses depois eu estava no pátio de casa, quando um senhor já de idade, que passava, parou ao perceber quatro pneus que estavam arrumados em um canto. Depois de me dar bom dia, ele foi logo perguntando se os pneus estavam ali para serem jogados no lixo:
- É que eu trabalho em uma fazenda no Aporema e queria dois pneus assim pra montar uma carroça e poder trabalhar sem muito esforço. Eu seria capaz de trazer umas cinco peremas pra quem me desse os pneus…
Aí deu na ferida, né? Eu fui logo lembrando que lá onde eu trabalhava haviam uns pneus sobrando e que o chefe já havia mandado jogar fora. Bastava ele passar lá no outro dia que estaria tudo na mão.
E o velhinho foi lá. Depois e examinar um a um, levou dois pneus meia-boca e disse que dali a quinze dias, quando retornasse da fazenda, traria as peremas. Só depois que ele foi embora, que eu lembrei que já havia sido enganado desse jeito. É lógico que o velinho não voltaria mais.
Eu estava enganado. Ele voltou. Foi numa segunda-feira, que minha secretária avisou que “o homem dos pneus” estava lá fora. Fui atender e ante que eu dissesse qualquer coisa, ele se adiantou:
- Meu querido amigo, trouxe suas peremas!!!
Imaginem o contentamento: cinco peremas para serem guisadinhas. Mas, cadê elas?
- É que eu deixei lá no Perpétuo Socorro, guardadas na casa de um amigo meu. O senhor me arranja 5 reais que eu vou lá buscar de moto-táxi rapidinho.
Dei 10 reais pra ida e volta. Aí sim, o cara desapareceu.
É pra não ter mais ódio no coração que eu não faço negócios envolvendo peremas.
*Joseli Dias é jornalista e escritor

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

MEDO

Tenho medo de amanhecer
Entre olhos molhados
E lençóis vazios
Tenho medo de esticar as mãos
E encontrar somente
Travesseiros vadios
Tenho medo de tê-la em meus braços
E deixá-la fugir
Por entre os dedos
Tenho medo que entre palavras
Teus olhos descubram
Meus medos.

ORGASMO

É no teu corpo
Que eu me escorro
Percorro
Sedento do teu mel

Se gemes
Se tremes
Treme contigo
O meu céu

No céu da boca
Teu gosto
Teu rosto
Transtornado de orgasmo

E o gozo final
Tão humano
E ao mesmo tempo
Tamanha fúria animal

GOZOS FUTUROS

Gosto do teu gozo
Do grito rouco
Que sai sem perceber

E quanto mais aperto
É certo
Que mais vais me querer

Mordo teus seios
Tão cheios
Tão maduros

Enquanto guardo forças
Para gozos
Futuros

PARTIDA

Meus olhos ficaram
Nas marcas do teu passo
Tentei dizer adeus
Mas tudo o que consegui
Foi chorar tua partida
olhei ainda
um lenço branco
que se distanciava ao longe
e as lágrimas ingratas
misturaram-se nas ondas

MONOFOBIA

A solidão
Bebe meus temores
Na escuridão do quarto

A taça
Aguarda com a certeza
Da queda e despedaço

O passo
Trôpego, torto
Desfaz os sonhos
Para que eu refaça

A vida
Passa
Sem graça

IDOLATRIA

O quarto
É escuro e frio
E nele
Habitam fantasmas

Os anjos...

Os anjos se afastaram de mim
Desconcertados
Com tanta heresia

Beijei teus pés
Tuas mãos
Ajoelhei-me diante de ti
Confundi
Teu amor com idolatria

E os anjos

Os anjos magoados fugiram
Bem antes de ti
E foi então
Quando perdi a fé
Que eu te perdi

TIMBÓ

O rio chora
Ferido pelo timbó
Enquanto agonizam traíras
Jejus e tucunarés

TIMBÓ

O rio chora
Ferido pelo timbó
Enquanto agonizam traíras
Jejus e tucunarés

RENOVAÇÃO

O barquinho à deriva
Anuncia que o pescador
Dorme no colo da mãe d’água

O mormaço da tarde
Prenuncia chuva
A molhar os campos
E abençoar a colheita

A correnteza dos rios
Nos impele avante
Com todos os nossos problemas

A morena, de pés descalços
E o filho no ventre
Nos lembra que a natureza
Se renova todos os dias

ATO IMPULSIVO

Rasguei teu bilhete
E atirei nas correntezas
Iara olhou-me
Censurando o ato impulsivo

Quis chorar
Rios de saudades
Mas tua lembrança
Passou junto com a tempestade

E quando nuvens se abriram
Um raio de sol
Me bateu nos olhos
E refletiu no meu sorriso

ORAÇÃO

Venho a Teus pés, Senhor, nesta oração
Pedir a graça de Tua proteção

Para que o bem eu faça com fervor
Ensinando a fé no Teu amor

Para que o mal eu vença nesta vida
E que minh’alma seja redimida

Para que a todos trate com bondade
Que eu tenha paz, amor e caridade

Que o Teu manto nos cubra de ternura
Que minha mente se conserve pura

Para que a todos nós, sem exceção
Sejas a Luz que brilha à escuridão

Fazei de mim discípulo ardoroso
Velai por mim, ò Santo Pai piedoso

Para que eu faça tão somente o bem
Com tua graça e para sempre. Amém.

MADRUGADA

Quando os homens já não te quiserem
Quando todos eles te disserem
Que és mulher da rua
Lembra-te do poeta que um dia
Com lágrimas compôs uma poesia
Sonhando ver-te nua

Quando teu perfume for tão vago
Quando nenhum freguês tiver-te pago
E a noite te pegar desprevenida
Lembra deste homem que te amava
Que por ti o seu amor sacrificava
E assim seria capaz de dar a vida

Lembra do poeta, do homem... e chora
Chora como estou fazendo agora
Ao ver-te nesta vida tão mesquinha
E lembra que o dinheiro não é nada
Quando se está na vida desprezada
E destinada a andar sempre sozinha

Depois... dá-me tuas mãos cansadas
E vamos relembrar das madrugadas
Que éramos tão jovens e as fadas
Nos pareciam sempre tão reais...
Dá-me tua mão, deita em meus braços
E permaneceremos neste abraço
E não nos deixaremos nunca mais

CONSUMO

Vivi
Cada minuto perdido
Do tempo que não foi meu
Chorei
Mágoas que se perderam
Por entre dores e sonhos

Hoje
Sou fruto de mim mesmo
Acridoce e amoroso
Descendo à garganta
De quem ousa me consumir

DIÁRIO DE UMA EMPREGADA DOMÉSTICA (ACHEI NA INTERNET)

Hoje de manhã eu fui à feira. Antes de sair, meu patrão me pediu para eu trazer figo. Aí eu perguntei:

- Figo fruta ou bife de figo?

O homem ficou uma fera ! Gente fina, seu Adamastor, num ligo não. Ele tem sistema nervoso.Também, com um emprego chato daqueles, vou te contar! Ele é Fiscal de Receita. Deve ser um saco ficar conferindo receita de médico o dia inteiro.

Depois chegou o Adamastorzinho, o filho mais novo deles. Acabou de ganhar um carro todo equipado. Tem roda de maionese, farol de pilha, teto ensolarado e trio elétrico. Não sei porque trio elétrico num carro. Deve ser porque ele gosta de música baiana.

Ingrato esse Adamastorzinho. Fiz a comida preferida dele e ele ainda me chamou de burra. Eu disse, toda boba, quando ele chegou:

- Adamastorzinho, adivinha a comida que eu fiz pra você?
- Qual, Creusa?
- Começa com 'i'...
- 'I'???
- É, iiiiiii!!!
- IIIII..... num sei.
- Pensa: iiiiiiiii.
- Huuuummm, desisto.
- Istrogonofe!!!

Aproveitando a ausência dos patrões, Creusa pega o telefone e fofoca com a amiga Craudete:

- Cê num sabe da úrtima? Eu discubri que aqui nessa mansão que eu trabaio é tudo fachada!
- Como assim, Creusa? - pergunta a colega, confusa.
- Nada aqui é dos patrão! Tudo é imprestado! TUDO! Cê cridita numa coisa dessas? Óia só: a rôpa que o patrão usa é dum tal de Armani... a gravata é dum tal de Pierre Cardin... o carro é duma tal de Mercedes... nadica de nada é deles!
- Nooooossa, que pobreza!
- E, além de pobre, eles são muito ixibidos! Imagina que ôtro dia eu escutei o patrão no telefone falano que tinha um Picasso...
- E num tem?
- Que nada, fia... é piquinininho de dá até dó!

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

MEU NOVO LIVRO: MÃE LUZIA (SÓ ALGUMAS ESTROFES




Se você não me conhece
Meu nome é Joseli Dias
Jornalista por acaso
Escrevedor de poesias
Eu vivo de contar causos
Para alegrar os meus dias

Quero aqui pedir licença
pra meu verso esquadrinhar
E deste jeito caboclo
Uma história lhe contar
Sobre a primeira parteira
Que surgiu em Macapá

Que me abençoe portanto
Minha Santa Margarida
A padroeira das grávidas
Que à luz nos traz a vida
E que às parteiras acode
Diante de sua lida

Que me abençoe também
O glorioso São Raimundo
Que protege com seu manto
As parteiras deste mundo
Que ele espalhe bênçãos
Em cada ventre fecundo

Quero pedir neste dia
Toda proteção do céu
Que Deus faça a poesia
Escorrer neste papel
E a história de Mãe Luzia
Se transformar em cordel

Mãe Luzia era uma negra
Que nasceu na escravidão
E sofreu quando menina
As dores da servidão
Cumprindo com sua sina
Até ganhar libertação

EXORCIZANDO



É na poesia
Que exorcizo meus demônios
Um a um
Transformo-os em poemas

A noite
Não é mais que um espelho onde o rosto
Do destino me fita
Impassível
Predizendo tormentos

E se as mãos
Tremem quando empunham a caneta
Não é o medo que se apresenta

É a dor
De não poder reescrever minha história

PASSO A PASSO

Pelas esquinas
Quando a noite chega
Que eu passo
A passo
Vou tecendo poemas

Estão neles a prostituta
Os motéis
Os cafetões de roupas coloridas
E perversidade estampada nas gravatas

Pelo cais cinzento
Quando minhas noites
São eternas
Que eu passo
A passo
Vou tecendo angústias
De olho no mar sereno
Que me levou para longe

Pelas esquinas to tempo
Quando todos os sonhos estão dormindo
Que eu passo
A passo
Vou olhando o mar
E mergulho sorrindo...

DESIGN

Uma lição de design
Diz o anúncio do carro
À porta da revendedora

Do alto da minha pobreza
Eu diria mais:
Diria que o carro
Vermelho-luz
É uma lição de sonho

Não queira eu
Almejar tanto
Afinal, há velocidade maior
Que a da palavra?

O carro
Pode ser detido pelo trânsito
Pelo guarda
Pelo poste.

A palavra
Sai da garganta
E atravessa o tempo
É o vermelho-luz
Intenso e infinito