quinta-feira, 25 de novembro de 2010

CALÇA MARROM, UM PAI ORGULHOSO

Esta semana ganhei um pequeno prêmio literário. Coisa boba, mas que me encheu de orgulho. No Teatro das Bacabeiras, onde teve a solenidade de entrega, enquanto todos os meus amigos comemoravam, eu lembrei do meu pai. Queria que ele estivesse lá, junto comigo, me olhando entre orgulhoso, feliz e tímido, me fitando com aqueles olhos verdes que com certeza me acompanham lá do céu.
Meu pai era contador de histórias, que nem eu. Passava horas entretendo uma platéia, formada por amigos e vizinhos, emendando um causo atrás do outro. Eu também sou meio assim, mas nem sempre.
Mas eu lembrava do meu pai, do seu jeito terno, carinhoso, mas muito duro quando se tratava de dar educação aos filhos, de fazê-los irem à escola, exigir comportamento exemplar e, de vez em quando, mas só de vez em quando, dar um bom corretivo com galho de goiabeira. Era aquela surra conversada, dava duas lambadas e aconselhava, depois dava mais duas lambadas, até que o conselho estivesse completo.
Eu tinha 14 anos na época. Era muito estudioso, vivia na biblioteca da escola, mas quando juntava com alguns colegas era um Deus-nos-acuda. A nossa diversão preferida era colar bombinhas de são João nas lâmpadas do colégio, juntar com um cigarro e acender. A explosão só acontecia minutos depois, quando já estávamos bem longe.
O meu pai, quando chamado na escola por algum motivo, dava primeiro uma surra para depois saber do que se tratava. Era o jeito dele de amar a gente, de cuidar, de proteger. Tempos antigos, quando uma boa cipoada não era proibida.
Eu já rabiscava algumas coisas nos meus 14 anos. As professoras gostavam de mim e elogiavam os meus textos. Foi assim que me convidaram para o concurso de melhor frase para o Dia da Árvore. Minha frase foi classificada em primeiro lugar. As professoras não me avisaram, queriam me fazer uma grande surpresa e acabaram conseguindo. A diretora da escola mandou um bilhete para o meu pai dizendo que ele comparecesse no dia seguinte, sem falta, à diretoria, para “tratar assunto sobre o seu filho”. Me deu o papel e me mandou entregar. “Estou frito”, pensei, enquanto nervoso e suando muito, caminhava para casa.
A obediência mandava eu entregar o papel, mas eu antevia a surra que estava por vir. Já era noite quando entreguei o bilhete. Meu pai soletrou com cuidado e em silêncio, não disse nada. Imaginei que estava tudo bem.
De manhã, quando saí para a escola, meu pai estava do meu lado, cara fechada, um galho de goiabeira na mão. Me segurou por um dos braço e me aplicou as primeiras lambadas. Eu não sabia porque apanhava, mas também não chorava, não reclamava, as pernas e costas doíam, mas eu segui firme, afinal alguma coisa eu tinha aprontado. Só parei de apanhar na entrada do portão. Meu pai entrou comigo na diretoria.
Enquanto eu me ardia de dor, a diretora foi explicando pra ele: “É que o seu filho ganhou o prêmio de melhor frase do Dia da Árvore. Eu lhe chamei aqui para pedir que o senhor fizesse a entrega do prêmio pra ele, e que cuidasse muito bem dele, porque no futuro ele vai lhe dar muito orgulho”.
Meu pai olhava pra mim de rabo de olho. Conversava com a diretora, dizia que sim, que eu era inteligente, que faria o que fosse preciso. Eu percebia, no entanto, que ele estava envergonhado pela surra que me deu pouco antes.
Minutos depois saímos da escola, eu e meu pai, lado a lado, mudos, ele cabeça baixa, eu fervendo de raiva. Eu já não sentia a dor nas costas e nas pernas. A minha dor era no coração, dor de menino que apanhou injustamente, dor de quem achava que não era amado pelo pai.
Mas meu pai não era de conversar. Era amoroso, justo, cuidadoso ao extremo com os filhos, mas não sabia traduzir seu amor em palavras. E eu não entendia. E quando estávamos bem perto de casa, passando em frente a uma sorveteria, ele disse a frase que mudaria completamente o que eu estava sentindo:
- Filho, quer tomar um sorvete?
Meu pai era muito pobre. Sorvete era um luxo na nossa vida. Lembro como se fosse agora o gosto do taperebá, enquanto ele me olhava, sem saber se falava alguma coisa, se pedia desculpas. Eu tenho certeza que se eu não aceitasse o sorvete, ele iria chorar.
Quando chegamos em casa já éramos pai e filho. Vínhamos rindo à toa, chutando pedrinhas, contando histórias. Minha mãe estranhou, mas ele entregou, com o maior orgulho do mundo, um corte de tecido, que foi o prêmio dado pela escola.
Minha mãe, com o tecido, mandou fazer uma bonita calça marrom, que usei até virar bermuda e não valer mais nada. Sempre que eu olhava para aquela calça, eu tinha orgulho de mim, da minha família e, principalmente, do pai maravilhoso que Deus me deu.

Joseli Dias é jornalista e escritor

Não faço mais negócios com perema

Tá decidido. Não faço mais negócios que envolvam peremas como forma de pagamento. Eu sei que os eco-chatos vão criticar meu paladar excêntrico, mas convenhamos: não dá para resistir a uma bela perema guisada, com pimenta de cheiro, arroz branco, farofinha e um açaí bem gelado. Na falta do açaí, costumo substituí-lo por uma dose de pinga para rebater o almoço.
Eu devo explicar que o fato de desistir das peremas nada tem a ver com consciência ecológica, porque essa degustação só é feita uma ou duas vezes no ano, quando viajo pelo interior, onde a quantidade de quelônios é farta e não há grandes alterações no meio ambiente. Na verdade, foi a cidade que me fez desistir. Se há um deus das peremas, talvez tenha o dedo dele nessa questão, porque, nas duas vezes em que eu pensei que as bichinhas iriam parar na minha panela, me enganei redondamente.
Na primeira vez estávamos eu e a professora Angela Nunes, minha esposa, a caminho do Curralinho, onde um amigo nosso tem um belo terreno de frente pro rio, farto em tucunarés. Eu gosto muito de pescar, então no domingo preparei o molinete, escolhi as iscas artificiais e seguimos pra lá. Íamos pela rodovia AP-10, quando logo depois de passar a lixeira pública, uma placa me chamou atenção:
BAR DA VIÚVA A 300 MTS.
Uma seta indicava que era só seguir um ramal que chegava lá.
Minha curiosidade falou mais alto e resolvemos conhecer rapidamente o local. Ao chegarmos lá, descobrimos que se tratava apenas de um barzinho muito mal ajambrado, com música brega e vários bêbados. Nem descemos do carro. Fazendo a curva de volta, fomos parados por um pinguço.
- Você vão pra lá? Me dão uma carona?
Eu disse que não, que não dava porque ia parar logo mais adiante, mas ele insistiu:
- Eu moro logo ali na frente. Se vocês me levarem, eu dou duas peremas que tenho guardadas lá em casa.
Falou em perema já viu, né?. Nem liguei pra minha mulher reclamando, mandei o cara entrar e levantei poeira na estrada. Quando chegamos na casa ele prontamente agradeceu e entrou rapidamente.
Eu fiquei lá, esperando ele voltar com as peremas e, como isso não aconteceu, businei pra ver se aparecia alguém. Apareceu. E era uma mulher zangada, maltratada pelo tempo, veio logo esculhambando.
- Vocês estavam com o sujeitinho, é?
Disse que não, que só tinha dado uma carona e esperava a perema de pagamento.
- Perema? Aqui não tem perema nenhuma. Ele sempre diz isso quando quer carona, disse a mulher, voltando a entrar na casa e batendo a porta, zangada.
O chato não foi ter perdido as duas peremas. O chato, mesmo, foi agüentar minha mulher rindo do caso enquanto, de cara fechada, pescava. Passei vários dias ouvindo ela contar para os parentes o acontecido.
Meses depois eu estava no pátio de casa, quando um senhor já de idade, que passava, parou ao perceber quatro pneus que estavam arrumados em um canto. Depois de me dar bom dia, ele foi logo perguntando se os pneus estavam ali para serem jogados no lixo:
- É que eu trabalho em uma fazenda no Aporema e queria dois pneus assim pra montar uma carroça e poder trabalhar sem muito esforço. Eu seria capaz de trazer umas cinco peremas pra quem me desse os pneus…
Aí deu na ferida, né? Eu fui logo lembrando que lá onde eu trabalhava haviam uns pneus sobrando e que o chefe já havia mandado jogar fora. Bastava ele passar lá no outro dia que estaria tudo na mão.
E o velhinho foi lá. Depois e examinar um a um, levou dois pneus meia-boca e disse que dali a quinze dias, quando retornasse da fazenda, traria as peremas. Só depois que ele foi embora, que eu lembrei que já havia sido enganado desse jeito. É lógico que o velinho não voltaria mais.
Eu estava enganado. Ele voltou. Foi numa segunda-feira, que minha secretária avisou que “o homem dos pneus” estava lá fora. Fui atender e ante que eu dissesse qualquer coisa, ele se adiantou:
- Meu querido amigo, trouxe suas peremas!!!
Imaginem o contentamento: cinco peremas para serem guisadinhas. Mas, cadê elas?
- É que eu deixei lá no Perpétuo Socorro, guardadas na casa de um amigo meu. O senhor me arranja 5 reais que eu vou lá buscar de moto-táxi rapidinho.
Dei 10 reais pra ida e volta. Aí sim, o cara desapareceu.
É pra não ter mais ódio no coração que eu não faço negócios envolvendo peremas.
*Joseli Dias é jornalista e escritor